Da fronteira americana ao símbolo da Polícia do Exército brasileira
Pistolas Harper’s Ferry: além da lenda
As pistolas flintlock Harper’s Ferry Model 1805 (às vezes chamadas de 1806–1808), calibre .54, não são armas qualquer: marcaram um avanço fundamental na história da produção bélica dos Estados Unidos. Produzidas entre 1806 e 1808 pelo Arsenal Nacional de Harpers Ferry (Virgínia, hoje Virgínia Ocidental), foram as primeiras pistolas militares padronizadas e com peças intercambiáveis no país — um salto tecnológico essencial para a logística militar da época.
Em serviço como armamento padrão dos Dragoons (cavalaria leve) durante e após a Guerra de 1812, eram emitidas em pares com números de série idênticos — e o mais alto registro encontrado é o 2048, indicando uma produção máxima de 4.096 unidades. Hoje, apenas entre 200 e 300 exemplares ainda existem
Transcendendo a função: o símbolo da Polícia Militar
Durante a reorganização do Exército em 1920, o Military Police Corps precisou de um símbolo distintivo. As tentativas iniciais, como os cassetetes cruzados, geraram confusão com os canhões; maças lembravam amassadores de batata; e pistolas Colt .45 pareciam réguas de carpinteiro. Finalmente, em 1922, o Capitão George M. Chandler propôs o ícone das pistolas Harper’s Ferry cruzadas, que foi adotado oficialmente em 1923, por ordem do general John J. Pershing.
Esse emblema, duas pistolas cruzadas, imediatamente consolidou a herança dos primeiros armamentos e passou a representar autoridade, prontidão e a missão da corporação — “Assist. Protect. Defend.” (Auxiliar. Proteger. Defender.)
O símbolo cruzou o Atlântico: Brasil na Segunda Guerra
Quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, em 1942, e decidiu enviar tropas à Itália, o general Mascarenhas de Moraes reuniu um contingente da Polícia Militar de São Paulo para formar o primeiro núcleo da futura Polícia do Exército — com funções de ordem, escolta e guarda de prisioneiros.
Para uniformizá-los com os aliados, criou-se o uso das pistolas cruzadas como distintivo, seguindo o padrão americano, mas com costura em linha cinza no lugar da amarela. Essa informação está detalhada no livro A Polícia de São Paulo nos Campos da Itália, do coronel PM Telhada.
Heráldica e tradição
No jargão heráldico, quando dois objetos alongados se cruzam formando um “X”, diz-se que estão “passados em aspa” ou sautor. Segundo o regulamento de uniformes da PMESP, mantem-se a tradição em que a pistola da esquerda sobrepõe a da direita — lembrando que “esquerda” e “direita” são definidas pelo usuário, e não por quem observa a imagem.
Desmistificando a lenda dos bucaneiros
Uma das histórias mais difundidas, mas historicamente equivocada, é a de que os bucaneiros (piratas das Antilhas) usariam essas pistolas cruzadas como insígnia durante a Guerra da Independência dos EUA. Contudo, os bucaneiros atuaram até o início do século XVIII, e as pistolas Harper’s Ferry só entraram em produção no século XIX. A semelhança cronológica é, portanto, impossível. O termo “pistolas bucaneiras” é apenas uma lenda sem fundamento histórico.
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